A Audi anunciou há dois anos que vai entrar na Fórmula 1 em 2026, após o processo de aquisição da equipa Sauber. É o culminar de um envolvimento na competição automóvel que começou, em grande escala, em 1980 pelos ralis e precisamente em solo português.































O rali do Algarve de 1980 teve um carro “0” muito especial à partida. O papel dos carros “0” é abrir a estrada antes dos concorrentes começaram a passar, de forma a verificar se está tudo pronto, tanto do ponto de vista da estrada, do posicionamento do público e da segurança em geral. Mas, por vezes, essa função é acumulada com outras.

A Audi acordou com a organizaçao do rali do Algarve de 1980, a utilização de um dos primeiros Audi quattro, totalmente preparado para competição, como carro “0”. Para a organização, a presença do conceituado piloto finlandês Hannu Mikkola ao volante, acompanhado pelo seu navegador Arne Hertz, era uma garantia de que a função de carro “0” seria perfeitamente desempenhada.
Uma primeira amostra
Além disso, era um atrativo suplementar para a prova, que assim atraiu também a imprensa estrangeira, nomeadamente a germânica que seguiu de perto o desenvolvimento do revolucionário coupé de ralis da Audi, com motor turbocomprimido e tração às quatro rodas.
Para a Audi Sport, era a primeira hipótese de testar em condições reais o novo quattro, pois Hannu Mikkola seguia o percurso exato dos concorrentes, tendo carta de controlo e cronometragem oficial. A equipa deslocou para Portugal um efetivo oficial para assistir o quattro e Mikkola fez o resto.

Ao final do rali, Mikkola tinha sido o mais rápido em 24 das 30 classificativas, só batido pelo Porsche 911 SC de Bernard Béguin nas classificativas de asfalto. No final, se tivesse concorrido na prova, o Audi quattro teria ficado 30 minutos à frente do vencedor oficial, Antonio Zanini num Ford Escort RS 1800. Mas claro que o carro “0” não conta para a classificação geral, até porque o quattro ainda não estava homologado para participar oficialmente em ralis.
Ninguém acreditava
As participações oficiais só começaram no ano seguinte, 1981, ainda como Grupo 4 e logo no mais famoso rali do mundo, o Monte Carlo. Contra a concorrência experimentada da Fiat, Ford, Opel e Talbot, o Audi quattro deixou todos de boca aberta nas classificativas cobertas de neve. A tração às quatro rodas era uma vantagem enorme, face à concorrência que só tinha tração atrás. Mikkola chegou a ser 2,5 segundos por quilómetro mais rápido que o melhor dos rivais.

Michèle Mouton, foi contratada como segundo piloto, numa manobra que tinha muito de marketing, apesar de a francesa ter muita experiência de ralis e ser realmente rápida. No entanto, o seu primeiro Monte Carlo a bordo do quattro terminou com um problema de motor. Quanto a Mikkola, depois de dominar a prova, foi traído pelas alterações constantes do piso, despistou-se e atrasou-se irremediavelmente.
Vitórias não faltaram
A conclusão desta primeira prova foi que o conceito do Audi quattro, com tração às quatro rodas e motor turbocomprimido, um conjunto considerado demasiado pesado e complexo pela concorrência, tinha mostrado um potencial incrível. Em breve, os ralis mudariam para sempre, e a responsabilidade foi da Audi.
A primeira vitória no WRC surgiu logo na segunda prova de 1981, no rali da Suécia, onde Stig Blomqvist, o terceiro piloto da equipa e especialista neste tipo de terreno, mostrou a vantagem da tração total sobre pisos de neve e gelo, usando a técnica da travagem com o pé esquerdo que se relevou a mais adaptada à condução do quattro.

A Audi Sport não parou de evoluir o quatro até 1986, ano da última prova, o trágico rali de Portugal. O quattro começou por passar de grupo 4 para grupo B. Inicialmente com a versão longa, semelhante à versão de venda ao público. Essa versão chegou a um estado de evolução que lhe permitia dominar a concorrência.
Em 1985, a Audi decide fazer uma versão de chassis curto, para responder aos pedidos dos pilotos e com um motor mais potente, chamava-se Audi Sport quattro S1, mas só teve sucesso quando passou à versão E2, com uma carroçaria alargada e com múltiplos dispositivos aerodinâmicos, entre eles uma enorme asa traseira.
Quatro títulos
Entre os 360 cv da versão inicial de 1981 e os 550 cv da versão final de 1986, a evolução foi enorme, o que permitiu à Audi Sport arrecadar dois títulos de campeão do mundo de marcas (1982 e 1984) e dois títulos de campeão mundial de pilotos com Hannu Mikkola (1983) e Stig Blomqvist (1984). Em seis anos, o quattro venceu 23 ralis do WRC, entre os quais o Monte Carlo, Portugal, Sanremo, RAC, Acrópole, Costa do Marfim e muitos outros.
Quando a FIA (Federação Internacional do Automóvel) decide abolir os carros de Grupo B no final de 1986, por serem considerados demasiado potentes e perigosos, a Audi Sport ainda participou no WRC em 1987 com um modelo de grupo A, um modelo no mínimo inesperado, a limousina 200 quattro. O programa não incluía todas as provas, mas o 200 quattro conseguiu uma vitória que tinha escapado às várias evoluções do quattro, o rali Safari com Mikkola ao volante.

Em vez de colocar o Sport quattro S1 E2 no museu, a Audi decidiu evoluir este “monstro” das estradas ainda mais e rumar ao Estado do Colorado, nos EUA, para disputar a famosa rampa Pikes Peak, evento onde já tinha participado e vencido em 1985, com Michèle Mouton num S1 “normal”. Bobby Unser sucedeu-lhe no ano seguinte com um Sport quattro S1 E2.
Mas para 1987, após o fim dos Grupo B, a Audi Sport decide evoluir o S1 E2 e preparou uma versão ainda mais radical, com mais e maiores asas, menos peso e mais potência. Guiado por Walter Röhrl, a Audi conseguiu uma vitória histórica ao ser a primeira marca a subir a rampa, então ainda em piso de terra, num tempo abaixo da barreira dos 11 minutos. Foi o fim de uma era para o quattro.
Trans-Am e IMSA
Mas a Audi não estava disposta a abandonar a competição automóvel. Depois do resultado em Pikes Peak, a Audi decide continuar nos EUA, onde precisava de aumentar a sua notorieade junto do público Norte-americano. O próximo desafio foi o campeonato Trans-Am de 1988.
Tratava-se de um campeonato disputado pelos tradicionais “muscle cars” americanos da altura, modelos de grandes dimensões e motores V8 de elevada potência, com suspensões e transmissões convencionais. O regulamento partia de modelos de estrada muito transformados, como o Mustang e Camaro, entre outros.

A Audi usou a estrutura do 200 quattro, mas teve que lhe aumentar as dimensões para ficar dentro dos regulamentos. Usou alguns dos componentes mecânicos da versão de ralis, como a transmissão e mantendo o seu motor 2.1 litros de cinco cilindros em linha turbocomprimido, um motor de grupo B mas muito mais pequeno que os V8 de 5,0 litros atmosféricos dos americanos.

Mas a Audi tinha duas vantagens que se vieram a demonstrar determinantes. Em primeiro lugar um turbocompressor de grandes dimensões que fazia subir a potência aos 635 cv, o mesmo nível dos V8 atmosféricos americanos e, em segundo lugar, o sistema quattro. Também aqui, os rivais americanos consideravam que a tração total era desnecessária, pelo menos antes do campeonato começar, por isso não se opuseram a que a Audi usasse o sistema quattro com diferenciais Torsen, embraiagens multidiscos e vectorização de binário. Diziam que se trava de uma espécie de Jeep.
Operação EUA terminada
A Audi, com dois 200 quattro, um para Walter Röhrl e outro para o Norte-americano Hurley Haywood, venceu nada menos do que oito das 13 corridas do campeonato e colocou os seus três pilotos nos três primeiros lugares, por esta ordem: Haywood, Röhrl e Hans Stuck, que também fez algumas corridas.
Face a este domínio, em 1989 a Audi Sport foi empurrada para fora do campeonato Trans-Am pelos organizadores da SCCA, através de uma alteração de regulamentos de última hora: a partir de então, só se poderia usar motores americanos e a tração às quatro rodas estava proibida. Mas a Audi permaneceu nos EUA, mudando para outro campeonato, mais exigente tecnicamente, o IMSA, com corridas mais longas. Mudou também para um novo modelo que precisava de promover nos mercados locais, o 90 quattro IMSA GTO.

Os fundamentos técnicos mantiveram-se, com o motor de cinco cilindros em linha e 2,1 litros, turbocomprimido e agora com 720 cv. A transmissão quattro foi melhorada, mas isso exigiu alguma afinação extra no início do ano. Outra novidade, pela primeira vez, a Audi Sport usou telemetria em tempo real.
A seguir o DTM
Devido a problemas de desenvolvimento do motor, que ainda era o do quattro S1 E2 Pikes Peak, a Audi não tinha conseguido alinhar nas duas primeiras corridas e por isso não venceu o campeonato, mas ganhou sete das 15 corridas com a mesma tripla de pilotos do ano anterior e mostrou a superioridade da sua tecnologia.

A Audi Sport fechou a operação nos EUA no final de 1989, depois de ter conseguido melhorar a sua imagem nos EUA e voltou para a Europa. O próximo desafio não foi o regresso aos ralis, mas a entrada no campeonato de turismos mais famoso do Velho Continente, o alemão DTM.
O modelo disponível para o DTM de 1990 era a enorme limousine Audi V8 quattro, que tinha a missão de rivalizar com modelos mais compactos e desportivos como o BMW M3 Sport Evolution e o Mercedes-Benz 190E 2.3 16 Evo. Mas a Audi continuava a ter uma vantagem que os rivais desprezavam, a tração quattro.
Duas vitórias e fora
O conjunto V8 3.6 de 416 cv e um peso de 1220 kg foi o suficiente para a Audi vencer o DTM em 1990 com Hans-Joachim Stuck e em 1991 com a versão V8 quattro Evolution, com a potência a subir aos 460 cv e o peso aos 1250 kg, guiado por Frank Biela.
No final do ano, a Audi Sport descobriu que a cambota do motor podia, por regulamento, ser alterada, dando ganhos significativos ao V8. Inquiriu a organização acerca desta possibilidade, que confirmou por duas vezes essa possibilidade. No entanto, por pressão das equipas da BMW e Mercedes-Benz acabou por inverter a sua opinião. Resultado, a Audi retirou-se a nível oficial do DTM no final de 1991.

Com o nascimento de vários campeonatos internacionais segundo o regulamento Super Touring, a Audi, primeiro com o 80 e depois com o A4, conseguiu vencer vários campeonatos nacionais e internacionais, só em 1996, ganhou em seis países diferentes com o A4, mas o regulamento técnico baniu os sistemas de quatro rodas motrizes rapidamente.
Regresso ao DTM
O DTM acabaria por impludir no final de 1996, para só voltar em 2000 e a Audi estava de volta, se bem que não através da equipa oficial, mas da muito próxima ABT e os seus ABT-Audi TT-R que venceram o campeonato em 2002 com Laurent Aiello.

Esta participação semi-oficial da Audi manteve a chama acessa e em 2004, a Audi Sport voltou oficialmente ao DTM, desta vez com o novo A4, que rivalizava com o Mercedes-Benz Classe C e o Opel Vectra GTS. E a Audi voltou a ser campeã logo nesse ano, com Mattias Ekström, que repetiu em 2007. Seguiu-se o seu companheiro de equipa Timo Scheider nos dois anos seguintes, 2008 e 2009 e Martin Tomczyk em 2011.
Doze títulos no DTM
Em 2012, a Audi mudou do A4 para o A5 e em 2013 para o RS5 e no ano seguinte o chassis em fibra de carbono passou a ser igual para todas as marcas, para reduzir custos. Mas mantiveram-se os motores V8 e as carroçarias inspiradas em modelos de série.

A Audi voltou a ser campeã do DTM em 2013 (Mike Rockenfeller), 2017, 2019 e 2020 (Rene Rast), as duas últimas já com os eficientes motores 2.0 litros turbo, tecnologia que a Audi dominou. Totalizando 12 títulos de pilotos Audi no DTM. Finalmente, em 2021 o DTM passou para a classe GT3, abrindo a porta a modelos como o Audi R8 LMS e muitos outros.
Departamento de clientes
A classe GT3 generalizou-se nas corridas de GT em todo o mundo, com vários campeonatos nacionais e internacionais a aparecer, onde as várias evoluções do R8, também em GT2 e GT4, tiveram enorme sucesso, nas mãos de muitas equipas privadas. Para os privados a Audi também disponibilizou o RS3 LMS para a classe TCR, que alcançou vitórias em circuitos como Macau e Spa.

Mas outro capítulo da história da Audi Sport tinha tido início em 1999, com a regulamentação das corridas de resistência, particularmente as 24 horas de Le Mans, a permitirem o regresso dos protótipos ao lado dos GT1, baseados em supercarros de estrada.
A longa história de Le Mans
A Audi Sport inscreve-se nas 24 Horas de Le Mans de 1999 com dois protótipos, um da carroçaria fechada, o R8C e outro de carroçaria aberta, o R8R, para perceber qual seria a melhor solução. Os R8R terminaram a corrida em terceiro e quarto e a questão ficou resolvida. No ano seguinte só vieram dois protótipos abertos, designados apenas como Audi R8. E um deles levou a Audi ao degrau mais alto do podio de Le Mans pela primeira vez.

Seguiram-se mais cinco vitórias para esta geração do R8, que estreou a tecnologia TFSI de injeção direta a gasolina em Le Mans, que lhe dava vantagem nos arranques das boxes após os reabastecimentos.
O primeiro Diesel a ganhar
Em 2004, a Audi não esteve presente a nível oficial, cedendo toda a sua tecnologia, engenheiros e mecânicos à equpa da Bentley, marca pertencente ao mesmo grupo, que venceu a corrida com o Bentley Speed 8. A Audi aproveitou o tempo para preparar outra inovação, desta vez a introdução do motor V10 TDi Diesel. O Audi R10 TDI venceu Le Mans por três vezes entre 2006 e 2008 e as suas evoluções R15 TDI e depois o R18 TDI venceram por mais duas vezes. Foi a primeira marca a vencer Le Mans com um Diesel e repetiu mais sete vezes, as três últimas associando o motor Diesel a um sistema híbrido.

De facto, a última grande evolução que a Audi levou para Le Mans foi o R18 e-tron quattro, equipado com um conjunto híbrido. A Audi foi também a primeira a vencer Le Mans com um híbrido e conseguiu três vitórias consecutivas entre 2012 e 2014. Finalmente, em 2016 fez a sua última prova em Le Mans e no campeonato de resistência. Entre 1999 e 2016, a Audi Sport venceu Le Mans por 16 vezes, apenas menos três do que o recorde da prova que pertence à Porsche, marca do mesmo grupo. E venceu 63 corridas desta categoria em 80 que disputou nesta categoria.
O desafio do rali Dakar
A Audi, em associação com a ABT foi das primeiras marcas a aderir à Fórmula E em 2017/2018 e venceu o campeonato. Outro grande desafio para a Audi foi a participação no rali Dakar, também aqui com uma tecnologia que nenhum outro construtor tinha ousado levar para o deserto, um sistema híbrido em série, que tem sempre tração elétrica às quatro rodas. Tudo começou em 2022, numa fase de aprendizagem que culminou três anos depois com a vitória de Carlos Sainz em 2024, ao volante do Audi RS Q e-tron.

Depois do longo projeto Le Mans, a Audi prepara-se para o maior desafio de todos, a Fórmula 1. Está em processo de aquisição da equipa suiça Sauber, para garantir um lugar na grelha da Fórmula 1 já em 2026, coincidindo com a próxima alteração dos regulamentos técnicos que vão dar mais importância à parte elétrica do novo sistema híbrido e à utilização exclusiva de combustíveis sustentáveis.

Um desafio para o qual conta já com a colaboração do experiente piloto alemão Nico Hulkenberg, enquanto se espera pelo anúncio do seu companheiro de equipa para 2025. Uma coisa é certa, a Audi tem pela frente uma tarefa à altura da competência que mostrou no passado, pois vai construir tanto o chassis como a unidade de potência. Poucas equipas o fazem.
Francisco Mota
(fotos arquivo Audi)